Eu não preciso saber do seu passado, nem das histórias das cicatrizes que traz. Eu não preciso destrinchar suas memórias mais antigas. Não preciso fazer perguntas indevidas. Não preciso entender. Eu só preciso perceber que veio, que chegou, que invadiu minha vida e que, com isso, transformará tudo que me cerca num colorido vibrante e inesquecível. Eu esperava, ansiava por você desde antes de saber que. Eu aguardava sua chegada desde muito antes. E esse encontro devolverá a mim o desejo de viver, de ser, de estar. Pressinto que você está perto e já abri todos os meus cômodos para sua chegada. Eu vejo os sinais e espero o abre-alas. Pressinto o que nos move e moverá por muito tempo. Pressinto o que carregaremos e construiremos em uníssono. Pressinto sua vida na minha vida nas nossas vidas. Pressinto um lar repleto e algazarras. Pressinto o sentimento inequívoco, perene, maduro. Pressinto a felicidade compartilhada por um, por dois, por três, por mais. Meus pressentimentos me permitem antever o que eu nem sei quando vai existir. A certeza de que existirá está em mim. Antevejo os diálogos que travaremos. Antessonho os sonhos de dois, de três, de quatro. Antessei o que diremos um ao outro nas noites de primavera-verão-outono-inverno. Eu sei que está aí em algum lugar e que, nesse momento, sua vida se prepara para se chocar com a minha. Eu sei que inescapável. E que chegue assim, súbito-suave, para ficar. E que não haja escapes, dúvidas, problemas e confusões; mas se houver, que sejam pulados como as ondas do mar. Pressinto sua chegada, eu escuto os passos ao longe e sei que, de algum modo, as engrenagens do caos já rodam a nosso favor. Falta só a gente se (re)conhecer.
* "Não te farei nenhuma pergunta embora precisasse não para te definir ou para te compreender não preciso saber de onde vens assim como para me definires ou me compreenderes não precisas de nenhum dado concreto mas eu não te defino nem te compreendo apenas sei que chegaste e que esta tua chegada modificará em mim todas as coisas que se tornaram suaves todas as cordialidades ou amenidades que contruí nesse tempo de absoluta sede ansiava por ti como quem anseia pela salvação ou pela perdição porque qualquer coisa poderia me salvar desta imobilidade que me devasta por dentro te direi apenas para sobreviver mas já não quero sobreviver já não quero apenas ir adiante é preciso que qualquer coisa abata essa letargia porque já não admiro precariedades porque não sei o que digo nem o que sinto mas persistirei no que pressinto". (Caio Fernando Abreu, O Afogado in: O Ovo Apunhalado, p. 92)
Um comentário:
"pressinto sua chegada, eu escuto os passos ao longe..."
um texto mais do que lindo.
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