quarta-feira, 9 de maio de 2012

Quem sabe?

Quando o Thiago morreu, uma música do Milton Nascimento ( "Quem sabe isso quer dizer amor" ) tava tocando muito no rádio. Eu fiquei um bom tempo sem ouvir as nossas músicas. Deixava o rádio ligado numa sintonia qualquer e se elas - as nossas músicas - vinham, eu mudava de estação. Essa música, em específico, nunca foi nossa, mas tocava tanto que, um dia, eu prestei atenção na letra e foi um deslumbramento. Aí, então, sempre que ela tocava eu achava que era ele me colocando pra ouvir. Meus pensamentos interpretativos são bastante criativos e eu imaginava uma história toda, em que ele se comunicava através dessa canção. Misteriosamente, ela tocava 4 ou 5 vezes por dia. O filme que passava na minha cabeça era mais ou menos assim:

Ele se dava conta de que tinha morrido e o espírito dele voltava para nossa casa para me encontrar e chegava ainda antes do sol nascer. Antes mesmo de entrar, um filme da vida inteira passava na cabeça dele e ele pensava em coisas que poderia falar, coisas que valeriam apenas para nós dois e me fariam perceber e acreditar que era ele mesmo que estava ali. Mas que tipo de comunicação se daria entre uma pessoa que já morreu e outra que estava viva? Sinais de bem, desejos vitais, pequenos fragmentos de luz. Ele falaria ainda da visão amplificada que quem já morreu consegue ter: a cor dos temporais, o céu azul, as cores de abril. Demonstraria que as coisas são muito além do bem e do mal e falaria daquilo que ninguém que está vivo jamais viu. Ele falaria que a vida segue em frente e o mundo continua a rodar, para sempre, e que, em cima dele, tudo vale. E ainda diria que através do amor é possível fazer o sonho acontecer.

Depois, ele falaria do tempo e era tempo demais que ele tinha agora. A eternidade de uma vida após a morte. Ele lembraria do meu sorriso e do meu beijo de paz e de como esse sentimento virou a cabeça dele. E ele não conseguiria parar de falar, o dia já estaria claro. E então, ele começaria um discurso religioso para que eu transformasse nosso amor (um ribeirão) em algo ainda maior (um braço de mar). Para isso, eu teria que encontrar aonde nasce a fonte do ser, e então seria ele falando de Deus para mim. E eu teria ainda que perceber que o coração dele ainda batia forte só por mim, mesmo depois de morto, comprovando a existência dessa vida além da morte. E, então, ele repetiria que o mundo continua a rodar e que vale  tudo em cima dele e que é através do amor que se faz o sonho acontecer.

Eu chorava muito ouvindo essa música, to-das as ve-zes. Hoje ela ainda faz muito sentido e aperta meu coração um tantinho, quando me pega desavisada, distraída. Ouvi esses dias novamente, sem querer, e pensei mais uma vez sobre a irreversibilidade da morte, de como essas pessoas que se vão permanecem tão vívidas em nós que ficamos aqui com uma saudade. Pensei também em como o tempo é um deus lindo, que faz com que o coração se acalme e, ainda que existam tantas, tantas, tantas lembranças, o sentimento não é mais de desespero, nem de dor, é só amor. Que bom que o mundo continua a rodar e que a vida  (a minha em específico) não parou lá atrás, naquele momento.


Cheguei a tempo de te ver acordar
Eu vim correndo à frente do sol
Abri a porta e antes de entrar
Revi a vida inteira
Pensei em tudo que é possível falar
Que sirva apenas para nós dois
Sinais de bem, desejos vitais
Pequenos fragmentos de luz
Falar da cor dos temporais
De céu azul, das flores de abril
Pensar além do bem e do mal
Lembrar de coisas que ninguém viu
O mundo lá sempre a rodar
E em cima dele tudo vale
Quem sabe isso quer dizer amor
Estrada de fazer o sonho acontecer

Pensei no tempo e era tempo demais
Você olhou sorrindo pra mim
Me acenou um beijo de paz
Virou minha cabeça
Eu simplesmente não consigo parar
Lá fora o dia já clareou
Mas se você quiser transformar
O ribeirão em braço de mar
Você vai ter que encontrar
Aonde nasce a fonte do ser
E perceber meu coração
Bater mais forte só por você
O mundo lá sempre a rodar,
E em cima dele tudo vale
Quem sabe isso quer dizer amor,
Estrada de fazer o sonho acontecer

(Quem sabe isso quer dizer amor - Milton Nascimento)