Uma vez, faz tempo, tive uma namorada em outra cidade. A cada quinze dias eu subia no avião e a visitava. Era delicioso aquilo tudo – pegar o avião, ser esperado na chegada, matar a saudades e trocar novidades, que sempre eram muitas. Além da relação com ela, havia o contato com a cidade dela, os amigos dela, os lugares que ela preferia. Eu gostava. Quando acabou o namoro, como as coisas boas às vezes acabam, senti falta de tudo. Da mulher, do avião, da cidade. Sobretudo, me fez falta o hiato romântico dos fins de semana intercalados. A vida com ele era mais rica.
Em tempos de internet e passagens baratas, estão se tornando alegremente comuns as relações à distância como a que eu tive. Um dos meus amigos namorou recentemente uma moça de Brasília. No trabalho, um colega tinha namorada no Rio. Faz tempo que não sei de ninguém à minha volta que esteja namorando no exterior, mas deve ser pura coincidência - isso se tornou quase banal nos últimos anos. Ela em Paris, você em São Paulo. Ele em Estocolmo, você por aqui – em Goiânia, Porto Alegre ou Salvador. Geografia não é mais destino.
Tem gente que, mesmo casada, passa longos períodos longe do marido ou da mulher. Meses. Nessas temporadas de sublimação, a relação vai de carnal a virtual. Desmaterializa-se, mas segue - pelo Skype, pelo Facebook, pelo email. Casais que vivem assim aprendem a esticar os laços sem rompê-los. Descobrem que sentimentos e compromissos são mais elásticos do que a gente imagina. Assim como a tolerância mútua.
O manual dos cínicos sugere, em sua infinita indelicadeza, que morar longe um do outro – bem longe - é a melhor maneira de manter uma relação duradoura. Quanto menos as pessoas se virem, quanto mais curtos os períodos de extrema convivência, (mesma casa, mesmo banheiro, mesmo cama), maior as chances de que continuem a gostar uma da outra. O arranjo perfeito, desse ponto de vista, seria viver em Ipanema e ter a cara metade morando em Dubai, a 14 horas e 55 minutos de distância num voo sem escalas. Não haveria sequer a possibilidade de entediar o outro com as reclamações diárias sobre o trabalho, via internet. Quando você chegasse em casa, às 8 da noite, seriam quatro da manhã por lá.
Os cínicos são engraçados, mas mesmo eles sabem que ninguém escolhe viver uma paixão à distância. Isso simplesmente acontece. Uma hora você teve de vir e a pessoa não pôde ou não quis acompanhar. Ou foi o contrário? As amarras práticas da vida são muitas e frequentemente incontornáveis, ao menos de forma instantânea. Conheço gente que fez loucuras para juntar-se de uma hora para outra ao parceiro no exterior, mas são notáveis exceções. E todas tinham menos de 30 anos. Mais anos significam mais laços, e maior dificuldade em desvencilhar-se deles. Tem de ter muito desapego para jogar uma vida pronta para o alto e começar outra do zero, por amor. Em geral as pessoas levam meses ou anos construindo pontes que permitam fazer a travessia.
Enquanto não se juntam, os amantes distantes têm experiências notáveis. Encontrar-se a cada par de semanas ou de meses, mesmo uma vez por ano, propicia momentos de enorme romantismo. Um dia você pode se achar parado numa plataforma de trem em Paris, com um buquê de flores na mão. Ou namorando num quarto de hotel suíço, enquanto a neve se acumula na janela. E não se trata apenas de viajar. Quase tudo ganha outro significado. Trocar emails cheios de saudades, manter longas conversas na noite de domingo, mandar presentes pelo correio. Isso tudo é dolorosamente bom. A distância faz crescer a presença do outro dentro de nós, num paradoxo de inspiração newtoniana. Quanto mais longe, mais perto. Quanto menos visível, mais presente. Não é o tipo de coisa que funciona indefinidamente, mas enquanto estamos apaixonados é divino.
Isso pode soar meio antiquado, mas a contenção dos sentidos, a impossibilidade do uso do corpo, produz na gente uns refinamentos sentimentais que eu acho bonitos.
À distância, em vez de lidar com um ser humano de carne e osso, a gente se relaciona com uma versão imaterial da outra pessoa. O parceiro passa a ser feito de palavras, lembranças e emoções. Nos dias de hoje, em que tudo ficou exageradamente material, isso é uma tremenda novidade. Obriga a perceber o outro de uma maneira que se preocupa mais com a essência do que com a aparência. Permite estimular sentidos e habilidades tão humanos quanto o olhar e o toque, mas que andam negligenciados pela cultura do instantâneo. O espírito prevalece temporariamente sobre a carne. Computadores, câmeras e microfones aproximam, mas eles não equivalem à presença física. Mesmo com vídeo, relações à distância continuam platônicas e idealizadas. É bom que seja assim, para variar um pouquinho.
Mais de uma vez já me fizeram a pergunta, e a resposta me parece clara: esse tipo de situação não é para sempre. Nada é, mas os amores à distância sofrem de precariedade ainda maior. Eles são tão sublimes quanto frágeis, porque as leis da Física são fortes ao nosso redor. Os outros corpos nos atraem e tendemos a construir na nossa vizinhança. Emocionalmente, o espaço criado por relações imateriais trabalha contra elas. Não se trata de uma questão de chifres ou traições. Acho que as pessoas que se amam e vivem longe uma da outra aprendem a lidar com a fidelidade de outra maneira. O problema real é ser atraído a fazer a vida com quem está por perto. O problema é a vontade de transformar em realidade a expectativa de uma vida comum. O problema, enfim, é a brevidade da nossa existência e o desejo de fazer com ela aquilo que todo mundo faz: dormir junto, montar casa, fazer filhos, ter uma família. A existência humana em toda parte está baseada em convívio e rotina. No longo prazo a necessidade dessas coisas se impõe – ao menos enquanto a tecnologia (quem sabe?), não nos ajudar a fazer de outro jeito.
Mesmo assim, ou talvez por causa de todos os problemas, eu recomendo. Da minha breve experiência de namorar na ponte aérea ficaram lembranças e percepções bonitas. Os amigos e amigas me contam experiências ainda mais tocantes, registradas em diferentes idiomas e paisagens. Eu gosto disso. É um dos privilégios de viver num mundo globalizado e num planeta cortado por aviões. Os meus avós (seus bisavós, provavelmente) se casavam com pessoas que viviam a menos de dois quilômetros de distância. E viviam sob regras morais e sociais que inibiam qualquer experimentação. As possibilidades de escolha eram reduzidas. Hoje temos acesso ao mundo inteiro, e a cultura nos permite fazer o que quisermos. Não é o caso de viver o tempo inteiro como se ainda estivéssemos no século XIX, não?